REFLEXÕES SOBRE A PUBLICIDADE INSTITUCIONAL DOS MUNICÍPIOS. DEBATE SOBRE O LIMITE TÊNUE ENTRE ELA E A PROMOÇÃO PESSOAL DE AUTORIDADES – Marcelo Palavéri.

Costumamos dizer: mais primeira pessoa do plural, e menos – evitando-se – primeira pessoa do singular. A Administração somos NÓS, e não EU.

I. O tema que submetemos à reflexão pode parecer simples, diante de uma leitura do artigo 37 da Constituição Federal. A norma estabelece:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

§1º A publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos.

O princípio da impessoalidade, estampado no dispositivo, proíbe a promoção pessoal de agentes políticos ou de servidores públicos nos atos, programas, na divulgação da realização de obras, na prestação de serviços e outros, que devem ser imputados ao órgão ou entidade administrativa da administração pública.

Isso significa que a atuação administrativa (atos, programas, realização de obras, prestação de serviços) deve ser imputada ao Estado, jamais ao agente. Por isso mesmo, só se admitirá a publicidade dessa atuação em caráter exclusivamente educativo ou informativo, não se permitindo constar nomes, símbolos ou imagens que possam associar à pessoa do agente.

Essa é a norma que prevê expressamente a vedação do uso de nome, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos em publicidade da administração pública.

Além do mais, toda atuação da administração pública deve visar à divulgação do órgão, entidade ou da própria administração direta ou indireta, sempre atendendo ao interesse público, e nunca a promoção dos denominados agentes públicos, autoridades, pois estes são apenas instrumentos da realização dos atos e serviços públicos.

Sobre este tema o Min. Alexandre de Moraes, do STF, preleciona que:

 “O legislador constituinte ao definir a presente regra, visou à finalidade moralizadora, vedando o desgaste e o uso de dinheiro público em propagandas conducentes à promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos, seja por meio da menção de nomes, seja por meio de símbolos ou imagens que possam de qualquer forma estabelecer alguma conexão pessoal entre estes e o próprio objeto divulgado”. “Está condicionada (a publicidade dos atos), porém, à satisfação dos requisitos constitucionais, que lhe imprimem determinados fins: caráter educativo, informativo ou de orientação social; e ausência de nomes, símbolos e imagens que caracterizam promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos” (Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional, Atlas, 7ª ed., 2007, pág. 885).

II. Conforme asseveramos inicialmente, a simplicidade do tema é apenas aparente – dissemos, linhas atrás, ao iniciar essas considerações, que: o tema que nos é submetido pode parecer simples. Mas definitivamente não é, mormente se considerarmos as variações fáticas que em regra se enfrenta no dia a dia das administrações públicas, especialmente as municipais.          

Atos são divulgados, publicidades são realizadas, programas são levados ao conhecimento público, campanhas de interesse coletivo são veiculadas, obras são anunciadas e inauguradas, e indistintamente há a intervenção de pessoas nesses procedimentos, muitas vezes com a reprodução de eventos, de solenidades, de momentos públicos em que se promove a divulgação e a publicização desses atos, programas, projetos, campanhas….

Isso por si – o aparecimento das autoridades, de pessoas, sua presença, indicação nominal para fins de registro até histórico como em placas indicativas do evento, alusão a elas na divulgação –  não fere a impessoalidade e deve ser analisado diante do caso concreto, sopesando as evidências das situações verificadas no dia a dia.

O mote que autoriza a administração a divulgar os atos, a publicar os programas, a levar a público o que faz, está na necessidade de prestar contas, de fazer conhecido da coletividade destinatária dos serviços públicos o que se fez com seu dinheiro. Uma verdadeira prestação de contas aos reais titulares do erário.

É diante desse mote, que as intervenções pessoais, das autoridades, devem ser analisadas, à luz do que diz o texto constitucional.

Com isso, pensamos que nem tanto ao céu, nem tanto à terra. O equilíbrio deve imperar, tendo como paradigma a norma da Carta de 1988.

Destarte, parece-nos muito elucidativa a decisão do Tribunal de Justiça São Paulo que segue:

Ação Civil Pública. Improbidade administrativa. Publicidade pessoal custeada com dinheiro do erário municipal. Fotos do prefeito inseridas em reportagem comemorativa de aniversário da cidade, com referência a obras públicas realizadas. A promoção de realizações governamentais, não proibida, embora deva ser impessoal, contém, em si mesma, a promoção pessoal do administrador público. Por isso, o fato de o Administrador aparecer fotografado, com outras pessoas, no ato de inauguração da obra, não comporta, só por isso, tipificação de improbidade administrativa e a exigência de ressarcimento ao erário municipal. Ação improcedente. Condenação do “Estado” ou o Ministério Público no pagamento de honorários de advogado em verbas de sucumbência. Inadmissibilidade. Inaplicabilidade do art. 20 do CPC. A regra é a da isenção absoluta de ônus para as partes, nos termos do art. 18 da Lei 7347/85. Recurso provido em parte. (TJSP,Apelação Cível nº.: 82.293.5/4-00, Rel.: Des. José Santana, DJ: 16/11/1999)

Mencionada decisão, na essência do que pretendemos firmar como posicionamento, complementa-se com outro julgado igualmente do Tribunal de Justiça de São Paulo:

“E isso porque o princípio da impessoalidade da Administração Pública, como ensina José Afonso da Silva em seu Curso de Direito Constitucional Positivo, Malheiros, 24ª ed., 2005, pág. 667/8, significa que os atos e provimentos administrativos são imputáveis não ao funcionário que os pratica, mas ao órgão ou entidade administrativa em nome do qual age o funcionário. Ou seja, o dispositivo constitucional consagra o caráter educativo, informativo e de orientação da publicidade dos atos, programas,obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos. Todavia, é contra o espírito da Constituição Federal a divulgação imoderada a benefício da autoridade pública. A Administração é pública e, portanto, há contrariedade frontal ao princípio da publicidade administrativa a que, como no caso, visa à promoção pessoal do administrador. (Apelação Nº 0003774-07.2013.8.26.0156 – VOTO Nº 25084 – COMARCA: Cruzeiro – 3ª Vara Cível, Relator Reinaldo Miluzzi) 

Transportando à realidade, não é crível que um evento da magnitude daqueles até aqui exemplificados se desenrole sem a presença das autoridades públicas, e que essas não sejam destaque na oportunidade, que discursem, que relatem o histórico do ocorrido, como se chegou até aquele momento…. Essa participação não está vedada pela regra constitucional (exceto em períodos específicos, eleitorais, nos termos da legislação vigente).

E ao retratá-los e divulgá-los, não há como apagar a figura dessas autoridades, sob pena inclusive de não se promover a real divulgação – aí sim ferindo a regra constitucional que determina o dever de informar – do ocorrido.

O mote de que falamos antes é que deve dar o tom da divulgação: divulga-se a obra, a campanha, o programa, a realização, o ato. Essa obra, campanha, programas e realizações, são da administração, e não do administrador. Costumamos dizer: mais primeira pessoa do plural, e menos – evitando-se – primeira pessoa do singular. A Administração somos NÓS, e não EU.

Fotografa-se a autoridade, por exemplo, decerrando a placa em uma inauguração, indica-se na placa os nomes e cargos das autoridades, e quando se promove a divulgação deve se falar mais sobre a obra, sobre seu benefício social e sobre os serviços que disponibilizarão à comunidade; fala-se com destaque da Administração, e óbvio, num contexto jornalístico, não há como “esconder”, o ato de inauguração, o decerramento da placa… a presença e a intervenção da autoridade (conforme se extrai da decisão do TJSP que reproduzimos: o fato de o Administrador aparecer fotografado, com outras pessoas, no ato de inauguração da obra, não comporta, só por isso, tipificação de improbidade administrativa e a exigência de ressarcimento ao erário municipal).

Não podemos, contudo, ao extremo, na divulgação, dizer e enfatizar a figura da autoridade, divulgar que a obra é sua, “agradecer nominalmente pela realização…”, retratar com dezenas de fotografias essa autoridade, e de passagem falar da obra em si. Isso é vedado pela Constituição.

Em síntese, o problema reside no já propalado equilíbrio, na atenção ao mote constitucional, e muitas vezes na mistura entre público e privado, na personalização das ações. Daí reforçar-se que o tema efetivamente não é simples.

III. E a dificuldade no seu enfrentamento, e na correta ação da Administração ao aplicar o preceito atinge picos inimagináveis se agregarmos alguns outros fatores, e variáveis, os quais não seria justo deixar de considerar nesta oportunidade. 

São eles, destacadamente: (i) a ação, muitas vezes bem-intencionada dos profissionais do jornalismo de marketing e propaganda; (ii) a falta de roteiro, script, ou direção aos eventos públicos e às manifestações das autoridades; e (iii) a facilidade de registro, divulgação e mesmo deturpação de contextos dos atos, reuniões….

III.i. Sem deixar de reconhecer o excelente trabalho muitas vezes desenvolvido por profissionais jornalistas, de propaganda e de marketing, é necessário indicar que a sua atuação livre, sem amarras, tendo por limite apenas o fim em si mesmo da divulgação, acaba por dificultar a adequação dos atos, programas, eventos, etc, quando divulgados. Dessa forma, é fundamental que se exerça, caso a caso, um crivo de constitucionalidade, realizado à luz do artigo 37, parágrafo primeiro, da Constituição Federal. Isso decerto trará segurança, e evitará problemas futuros.

III.ii. Muitas vezes os eventos públicos de divulgação de atos, programas, projetos e campanhas da Administração são os mais problemáticos quanto ao respeito à norma constitucional. E isso se deve ao improviso. Indistintamente são realizados sem roteiro, sem script prévio, com liberdade para manifestações, falas, discursos. O risco se acirra nesses casos, pois o uso indiscriminado da palavra, ainda que cercado de boas intenções, reveste-se em um grande perigo. É então indispensável estabelecer critérios rígidos para isso, com orientação clara aos que farão uso da palavra, esclarecendo sobre o mote da regra constitucional. Os mestres de cerimônia, apresentadores… especialmente, devem ser alertados desse perigo.

III.iii. Não vale mais a máxima de que as palavras se perdem com o vento (algo assim já disse Padre Antonio Vieira: Para falar ao vento bastam as palavras…). Hoje, diante das tecnologias disponíveis, tudo é registrado, tudo é documentado e poderá depois ser usado como prova (lembre-se que isso foi anunciado por George Orwell, ao falar do grande irmão). Assim, o que for dito, onde quer que seja, será registrado, não há dúvida disso (é possível dizer que hoje já andamos armados, com nossos celulares, e uma arma muito letal, que a tudo vê, tudo pode registrar, e permite que todos nos sigam. É ilusão pensar o contrário).

IV. Contextualizada a interpretação do artigo constitucional por essa realidade fática, torna bastante difícil dizer quando uma publicidade levada a efeito pela Administração destoa daquilo que é autorizado, deixando de ser de caráter exclusivamente educativo ou informativo, não se permitindo constar nomes, símbolos ou imagens que possam associar à pessoa do agente, e passando a ser promoção pessoal da autoridade.

Daí a imensa maioria das decisões colacionadas a seguir indicarem o repúdio aos procedimentos levados a cabo pelas administrações em geral, a indicar afronta ao que determina a Constituição Federal em seu artigo 37, parágrafo primeiro. Seguem as decisões:

Supremo Tribunal Federal.

Publicidade de atos governamentais. Princípio da impessoalidade. (…) O caput e o § 1º do art. 37 da CF impedem que haja qualquer tipo de identificação entre a publicidade e os titulares dos cargos alcançando os partidos políticos a que pertençam. O rigor do dispositivo constitucional que assegura o princípio da impessoalidade vincula a publicidade ao caráter educativo, informativo ou de orientação social é incompatível com a menção de nomes, símbolos ou imagens, aí incluídos slogans, que caracterizem promoção pessoal ou de ser­vidores públicos. A possibilidade de vinculação do conteúdo da divulgação com o partido político a que pertença o titular do cargo público mancha o princípio da impessoalidade e desnatura o caráter educativo, informativo ou de orientação que constam do comando posto pelo constituinte dos oitenta. (RE 191.668, Rel. Min. Menezes Direito, julgamento em 15‑4‑2008, Primeira Turma, DJE de 30‑5‑2008.)

Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo:

“ELEIÇÕES 2014. RECURSO ORDINÁRIO. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. PUBLICIDADE INSTITUCIONAL. GASTOS. GOVERNADOR E VICE-GOVERNADOR. CONDUTA VEDADA. ABUSO DO PODER POLÍTICO. USO INDEVIDO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL. 3. A realização de propaganda institucional somente é admitida nos termos do art. 37, § 1 2, da Constituição da República, sendo vedada a utilização de imagens ou símbolos que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores. 6. A utilização de dinheiro público para a veiculação de publicidade institucional que não cumpre os ditames do § do art. 37 da Constituição Federal em período pré-eleitoral,que serve precipuamente para a autopromoção do governante, tem gravidade suficiente para atrair a sanção de inelegibilidade. (…)” (RO n9138069, Ac. de 07/02/2017, Rel. Min. Henrique Neves da Silva, DJE – 07/03/2017).

Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo: 

EMENTA: RECURSO ELEITORAL. ELEIÇÕES 2016. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. PREFEITO, VICE-PREFEITO E COLIGAÇÃO. SENTENÇA DE PARCIAL PROCEDÊNCIA. CONDUTA VEDADA AOS AGENTES PÚBLICOS E PROPAGANDA ANTECIPADA. ART.36, 73, I, II E VI, “B” E 74, DA LEI NQ 9.504/97. ART. 22, XIV, DA LC N° 64/90. ABUSO DO PODER POLÍTICO E PROPAGANDA ANTECIPADA. CARACTERIZADOS. COMPROVADA A UTILIZAÇÃO DE BENS PERTENCENTES À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA MUNICIPAL PARA PROMOVER A CANDIDATURA DO CANDIDATO A PREFEITO REPRESENTADO ATRAVÉS DE PROPAGANDA INSTITUCIONAL EM PERÍODO VEDADO. DIVULGAÇÃO ATRAVÉS. DE INTERNET, REDES SOCIAIS E APLICATIVO ELETRÔNICO ‘WHATSAPP’. MATERIAL PROPAGANDÍSTICO COM VÍDEOS CONTENDO IMAGENS DO ALCAIDE, SENDO QUE ESTE, PESSOALMENTE, APRESENTA AS AÇÕES DO SEU GOVERNO ENQUANTO TITULAR DO PODER EXECUTIVO DO MUNICÍPIO. AFRONTA AO PRINCÍPIO DA IMPESSOALIDADE. INTELIGÊNCIA DO ‘ART. 37, § 1°, DA CF/88. PRECEDENTE. GRAVIDADE DA CONDUTA CARACTERIZADA. COMPROMETIMENTO DA LISURA DO PLEITO. ABUSO DO PODER POLÍTICO CONFIGURADO. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. (RECURSO ELEITORAL Ng- 369-71.2016.6.26.0237 – CLASSE Ng 30 – MAIRIPORÃ – SÃO PAULO, Relatora Claudia Lúcia Fonseca Fanucchi)

Autor:

Marcelo Palavéri é Advogado em São Paulo, especialista em Direito Municipal.



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